Jornalismo Cultural e Propaganda


Millôr Fernandes tem uma frase célebre: "Jornalismo é oposição; o resto é armazém de secos e molhados". Traduzindo e atualizando a implacável formulação, podemos dizer que, se o jornalismo não for crítico, ele será apologético ou propagandístico. No caso do jornalismo dito cultural, a fronteira entre jornalismo e publicidade é muitas vezes nebulosa.




Obrigados a acompanhar de perto as novidades da produção cultural (livros, filmes, peças de teatro, discos, shows, exposições) e orientar o leitor nessa selva de produtos, ofertas e apelos, os jornalistas da área freqüentemente se vêem numa situação vulnerável às pressões de divulgadores e assessores de imprensa - quando não dos próprios artistas e produtores culturais.




Inúmeros são os fatores que contribuem para limitar a autonomia crítica do jornalista cultural. Vejamos rapidamente alguns dos mais graves e freqüentes.







1.A obsessão pelo "furo"




A idéia de "dar a notícia primeiro", que faz sentido (embora nem sempre) para outros setores do jornal - política, economia, cidades -, pode ser nefasta para a cobertura do que ocorre na área da cultura.




Contaminado pela síndrome do furo, o jornalista muitas vezes sacrifica a qualidade da cobertura e a idoneidade de seu julgamento para dar primeiro ou sozinho uma matéria.




Ouve dizer, por exemplo, que será publicado no Brasil o romance de um importante escritor norte-americano. Antes de ter tempo de ler o livro (e muito menos de pensar sobre ele), consegue às pressas o telefone do autor e faz com ele uma entrevista afoita e superficial. Pronto: deu o furo, que vai talvez pesar positivamente na sua avaliação profissional. Pouco importa que tenha feito um serviço porco e de baixa qualidade.

Mas o prejuízo não termina aí. O jornal concorrente, tendo tomado o furo, não quer acusar o golpe e para isso prefere ignorar o livro em questão, pretendendo que ele não tenha importância. Resultado: saem perdendo os leitores de ambos os veículos: o que deu o furo e o que o tomou.

2.A chantagem das assessorias




Como decorrência da obsessão pelo furo, o jornalista da área cultural fica à mercê do poder de pressão dos divulgadores e assessores de imprensa. Uma situação muito comum é a do assessor que negocia a informação ou o acesso a determinado artista em troca de matérias de destaque na imprensa. A barganha é mais ou menos assim: "Se você der capa para o disco do Fulano eu te arrumo uma exclusiva". O jornalista automaticamente passa a crer que uma entrevista exclusiva do Fulano é a coisa mais importante do mundo, e convence seu editor a dar uma capa para ele. Aquilo que talvez não fosse importante passa a sê-lo.


Há uma modalidade mais grave de pressão das divulgadoras, que é o oferecimento de passagens e hospedagens para a realização de determinadas coberturas. Situação típica: a banda de rock "x" vem ao Brasil, como parte de uma turnê internacional. A gravadora da banda oferece aos jornais passagens para que seus jornalistas possam cobrir o show no local da etapa anterior da turnê (Buenos Aires, México, Lisboa, pouco importa). Como regra geral, nenhum editor de caderno cultural questiona a importância do evento. Manda um jornalista (quando não vai ele próprio) para a cobertura e dá na capa do caderno.



Está claro que, nos dois casos citados acima, o que está comprometido é não apenas o julgamento do crítico com relação a determinado produto cultural, mas a própria autonomia do jornal na hierarquização da importância dos eventos. O jornal se torna uma linha auxiliar da propaganda e, em última análise, um mero reforçador do mercado.




3. Promiscuidade entre jornalistas e produtores culturais Mais difícil de definir e de mensurar, mas igualmente perniciosa, é a ambigüidade das relações entre jornalistas e produtores e agentes culturais. Em países mais civilizados, as funções de repórter e crítico são desempenhadas por indivíduos diferentes, pelo menos em cada circunstância. Ou seja, se um jornalista entrevista o diretor de um filme, quem faz a crítica deste é um outro jornalista. Aqui isso não acontece. Freqüentemente o repórter-crítico vê-se na situação delicada de entrevistar, com toda a cordialidade, determinado cineasta, e em seguida fazer a crítica de seu filme. Não há quem fique completamente imune à cordialidade ou ao charme de seu entrevistado na hora de comentar seu trabalho. O pior é quando ocorre o contrário: depois de desancar o filme, o jornalista tenta entrevistar seu diretor. Quando este concede a entrevista (o que nem sempre ocorre), a conversa geralmente acaba truncada pela hostilidade e pela desconfiança mútua.




 Para que o jornalismo cultural conquiste maior autonomia e credibilidade, distanciando-se da mera propaganda, é necessário que todos os setores envolvidos (jornais, assessorias, produtores culturais) adquiram uma mentalidade mais profissional e menos predatória. Cabe aos jornalistas, entretanto, tomar a iniciativa no sentido de definir a sua seara e não permitir que seja invadida por estranhos.




José Geraldo Couto, jornalista











Quatro perguntas para Olavo de Carvalho sobre jornalismo cultural



Entrevista realizada via e-mail por Talita Nóbrega, Kátia Portugal e Karla Szabados, alunas da Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro.






O que o sr. entende por Jornalismo Cultural?



Olavo: O jornalismo cultural é, ao mesmo tempo, um reflexo jornalístico da criação cultural e ele mesmo um tipo de criação cultural. Por definição, e aliás como qualquer outro tipo de jornalismo, ele tem de atender a duas ordens de exigências, simultâneas e ambas igualmente legítimas: as exigências da produção jornalística (prazos, normas de redação, etc.) e as exigências do seu assunto (no caso, a cultura em geral).


Mas é evidente que aquelas devem ser postas a serviço destas, e não ao contrário. Uma analogia tornará isso mais claro: o jornalismo médico é jornalismo, isto é, tem de atender às imposições da técnica industrial jornalística, mas por outro lado seria absurdo que alterasse o conteúdo da ciência médica para adaptá-la a essas imposições: o que tem de ser amoldado à técnica jornalística é a difusão da medicina, e não a medicina mesma. Caso contrário, o jornalismo médico seria uma espécie de cópia inferior da medicina - uma falsa medicina amoldada ao gosto jornalístico.


Ora, o que acontece nos nossos suplementos culturais é que, em vez de amoldar-se às exigências mais altas da cultura, eles procuram espremê-las no padrão jornalístico de cada publicação, isto é, nos critérios de interesse vigentes no noticiário geral.


Assim, por exemplo, entre um livro excelente sobre assunto alheio ao noticiário geral e um livro ruim sobre assunto de interesse jornalístico, este último é que é valorizado. Com isto, o jornalismo cultural torna-se apenas "jornalismo geral de assunto cultural", perdendo o que é específico do jornalismo cultural.


O específico, em cada área de jornalismo, reside precisamente em incorporar critérios que, em si, não são jornalísticos, mas são próprios do assunto como tal. Uma página de turfe, por exemplo, não privilegiará um jóquei por ser um tipo bonitão ou por ter matado a mãe (destaques que seriam legítimos no noticiário geral), mas por ter se desempenhado bem segundo critérios estritamente turfísticos. Isto é tão óbvio que nem deveria precisar ser explicado, mas o nosso jornalismo está tão doente que tem dificuldade em entender essas coisas.


Concorda com a idéia de que o Jornalismo Cultural tornou-se uma instituição? Por quê?


Durante os anos da ditadura, a imprensa, paradoxalmente, melhorou muito, ao tornar-se o centro dos grandes debates nacionais, chegando a superar, em certos pontos, o debate universitário. O prestígio cultural de alguns jornais e revistas subiu às nuvens. Os atuais suplementos culturais são o efeito materializado desse prestígio, são prestígio institucionalizado. Infelizmente, a força que os constituiu desde dentro já se extinguiu, e eles são apenas uma cópia de si mesmos.


Como são realizados os trabalhos numa editoria cultural?


Isso mudou muito. Antigamente, quem escrevia para os suplementos culturais eram as pessoas de real valor nas diferentes áreas da criação cultural. Vale a pena vocês darem uma espiada nos antigos suplementos do Estadão, do JB, de O Jornal, etc.


Eram uma coisa assombrosa. A partir do momento em que os critérios jornalísticos gerais começaram a predominar sobre as exigências específicas de cada área da cultura, julgou-se que qualquer repórter deveria ser capaz de fazer matérias culturais - o que é um critério absurdo, que não se ousa adotar, por exemplo, no jornalismo esportivo, onde ainda se respeita o conhecimento especializado. No antigo jornalismo cultural, não havia pauta, exceto para uma ou duas matérias: para o resto, formava-se um grande corpo de colaboradores especializados, cada qual capaz de acompanhar as novidades no seu próprio setor, e respeitava-se o material que enviassem.


No estilo atual, os editores de suplementos (em geral eles próprios gente de formação apenas jornalística e sem nenhum mérito especial em literatura ou ciências, por exemplo) se tornaram tiranetes e a pauta se tornou uma régua destinada a tudo nivelar pela altura da cabeça deles.


Para piorar, adotou-se nas páginas culturais a medida padrão das matérias do noticiário geral, sempre curtinhas porque se destinam a um público que supostamente odeia ler. Hoje em dias os ensaios brilhantes de Otto Maria Carpeaux ou Álvaro Lins seriam recusados sob a alegação de falta de espaço (tanto mais absurda e demagógica quanto mais os jornais cresceram em número de páginas desde a década de 50).


E o mais deprimente de tudo é que esses editores, quanto menos se exige deles em preparo cultural, mais autoridade adquirem: eles têm hoje até mesmo o direito de meter a caneta no texto alheio, como se um escritor profissional fosse um foquinha necessitado da sábia assistência de um copy desk. Os suplementos culturais de hoje assinalam, enfim, uma usurpação da cultura pela classe jornalística - gente tão prepotente quanto a casta militar que nos governou por vinte anos.


Quais os critérios usados nas críticas culturais?


É difícil generalizar, mas acho que a importância jornalística, o apelo político imediato e as preferências de grupos reivindicantes acabaram por predominar sobre o critério do interesse profundo, que subentende uma visão histórica muito mais abrangente do que, em geral, a dos resenhistas. O que acaba vigorando é uma concepção redutivista, onde só tem importância nas páginas culturais aquilo que poderia ser transferido tal e qual para as páginas de noticiário geral, comportamento, diversões, etc. Aquilo que tenha importância somente intelectual, filosófica ou científica, sem se traduzir em conseqüências políticas ou comportamentais imediatas, é como se não existisse.